O que a adesão do Brasil ao Tratado de Budapeste significa para as empresas inovadoras e o setor de biotecnologia
- Júlia Gobbo

- 10 de nov.
- 7 min de leitura
Inovação, biotecnologia e ambiente empresarial
A recente adesão do Brasil à Tratado de Budapeste sobre o Reconhecimento Internacional do Depósito de Microrganismos para Fins de Patentes (Budapest Treaty) marca um passo relevante no cenário da propriedade intelectual nacional e internacional. No dia 20 de outubro de 2025, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) depositou, junto à World Intellectual Property Organization (WIPO, Organização Mundial da Propriedade Intelectual), a carta de adesão do Brasil, que se tornará o 92.º país signatário.
Para empresários e gestores, esse fato não é mero protocolo diplomático: ele abre novas oportunidades e exige atenção estratégica — especialmente nos setores de biotecnologia, farmacêutica, agronegócio, saúde e demais segmentos em que há depósito de microorganismos, insumos genéticos ou desenvolvimento de patentes com base biológica. A partir de agora, as empresas que atuam nestas áreas devem revisitar seus sistemas de proteção, estrutura de inovação e compliance em propriedade industrial, em especial no que toca ao depósito de material biológico para fins de patente no exterior e no Brasil.
Neste artigo, vamos explorar os aspectos legais e práticos dessa adesão, suas implicações para a gestão empresarial da inovação e os cuidados que os gestores devem adotar para incorporar essa evolução no ambiente corporativo, sempre com foco educativo e sem promessas de resultados.
Aspectos legais da adesão e seu impacto no sistema de patentes
O que o tratado prevê e qual seu funcionamento
O Tratado de Budapeste, em sua essência, regula o reconhecimento internacional do depósito de microrganismos (ou outros materiais biológicos) para fins de pedidos de patente. A lógica é que, quando um invento envolve material biológico que não pode ser descrito suficientemente por escrito — por exemplo, cepas de microorganismos, linhagens de células, vírus, bactérias ou fungos —, tal material possa ser depositado em uma Autoridade Depositária Internacional (“IDA” – International Depositary Authority) reconhecida. Com isso, o depositante satisfaz o requisito de suficiência descritiva (ou de “descrição suficiente” ou “reprodutibilidade”) exigido para pedido de patente.
No regime brasileiro, a Lei n.º 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial – LPI) já prevê no art. 24, parágrafo único, que “no caso de material biológico essencial à realização prática do objeto do pedido e que não possa ser descrito na forma deste artigo … o relatório deverá ser suplementado por depósito do material em instituição autorizada ou em acordo internacional indicado pelo INPI”. Assim, a adesão ao tratado conecta diretamente com o sistema nacional de patentes e reduz uma assimetria que existia — qual seja: o depositante nacional precisava recorrer a depósito no exterior ou enfrentar incertezas se o país era signatário do tratado. Com a adesão, o Brasil poderá indicar instituições nacionais que funcionem como IDA, permitindo que empresas, pesquisadores ou laboratórios façam o depósito de material biológico em território nacional, o que potencialmente reduz logística, tempo e custos — além de favorecer maior controle estratégico sobre esses depoimentos.
Implicações para empresas e proteção de patentes
Para gestores de empresas com atividades de P&D (pesquisa e desenvolvimento), inovação biotecnológica ou que pretendam internacionalizar suas patentes, a adesão contém diversos impactos práticos:
Redução de barreiras logísticas e custos de depósito: antes, o depósito de microorganismos frequentemente demandava envio ao exterior e custos associados de transporte, armazenamento e cumprimento de normas de outro país. Agora, com a indicação de IDA nacional possível, os custos podem diminuir e o processo de internacionalização pode se tornar mais ágil.
Maior segurança jurídica para inventores nacionais: a empresa ou laboratório passa a contar com um arcabouço internacional reconhecido, o que reduz risco de invalidação ou contestação posterior por não cumprimento do requisito de depósito. Em particular, a suficiência descritiva (art. 24 da LPI) deixa de depender exclusivamente de depósito no exterior.
Maior competitividade internacional: ao participar de um regime reconhecido globalmente, empresas brasileiras ganham em credibilidade de mercado e acesso mais facilitado à cadeia global de inovação e comercialização — um ponto relevante em biotech, agritech, saúde e licenciamento tecnológico internacional.
Exigência de governança e compliance de inovação: com a adesão, empresas devem rever políticas internas de P&D, contratos de transferência de tecnologia, confidencialidade, gestão de material biológico e propriedade intelectual, para garantir que os depósitos sejam devidamente efetuados, monitorados e que os direitos de patente sejam protegidos no Brasil e no exterior.
Integração com políticas de biodiversidade e recursos genéticos: o Brasil, país megadiverso, tem obrigações específicas no que toca à conservação, ao uso sustentável de recursos genéticos e à repartição de benefícios (como na Lei de Proteção de Cultivares, ou o acesso ao patrimônio genético). A adesão ao tratado mostra uma articulação entre a política de inovação e de biodiversidade — o que exige que empresas empresariem com essa realidade, em especial quando o material biológico estiver vinculado a recursos genéticos nacionais.
Aspectos de transição e desafios empresariais
Embora a adesão abra oportunidades, há ainda aspectos que os gestores devem ter em mente. Primeiro, a formalização internacional da adesão não significa que automaticamente todo depósito nacional será aceito como IDA ou que a infraestrutura nacional esteja imediatamente operacional. Será necessário indicar instituições, definir procedimentos, capacitar laboratórios e adequar regulamentos internos.
Segundo, a empresa deve revisar seus contratos de P&D, licença de tecnologia, acordos de transferência de material biológico e cadeias de suprimento: é fundamental assegurar que o depósito ocorra em conformidade com o tratado e com a LPI, de modo a evitar impugnações futuras ou falhas de proteção.
Terceiro, o aspecto internacional exige atenção: o depósito em ambiente nacional não exclui que, se for almejada proteção em outros países, seja necessário compatibilizar com o regime local desses países, ou ainda realizar depósito adicional onde exigido. O tratado facilita, mas não elimina todos os trâmites internacionais. E, em muitos casos, o pedido internacional de patente (via Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes – PCT) ainda exigirá navegação entre jurisdições e prazos.
Por fim, segue sendo essencial a integração entre as áreas de inovação, jurídica e estratégica da empresa, a fim de garantir que a adesão ao tratado não se torne apenas um marco simbólico, mas um elemento efetivo de vantagem competitiva.
Implicações práticas para o gestor empresarial
Estratégia de propriedade intelectual no contexto de biotecnologia
Para a empresa que atua ou planeja atuar com inovação envolvendo material biológico — sejam laboratórios, startups, universidades ou empresas industriais — é crucial revisar o pipeline de inovação à luz dos seguintes pontos práticos. Primeiramente, mapear internamente quais invenções envolvem microorganismos ou material biológico essencial que não pode ser descrito por escrito inteiramente, de modo a saber se haverá necessidade de depósito sob o Tratado de Budapeste ou se o regime interno já basta. Em segundo lugar, planejar o momento do depósito: a redação do pedido de patente deve contemplar a indicação de depósito e as obrigações decorrentes do art. 24 da LPI. Em terceiro lugar, alinhar contratos de pesquisa e desenvolvimento, transferências de tecnologia e parcerias internacionais com cláusulas que prevejam o depósito, a titularidade, a responsabilidade pelo custeio e o destino das amostras biológicas.
Custos, cronograma e compliance
Do ponto de vista empresarial, a adesão ao tratado pode reduzir custos de envio externo ou múltiplos depósitos internacionais, mas há que considerar: quem irá custear o depósito? Qual o laboratório nacional que será aceito como IDA? Qual o prazo até que isso esteja plenamente disponível e confiável? O gestor deve prever orçamento para a fase de transição e estabelecer cronograma interno para adaptação. Também é recomendável instituir controle documental: registros de depósito, contrato de custódia, backups, monitoramento de prazos e obrigações de confidencialidade, além de políticas de armazenamento de amostras e regimes de backup em caso de falha da IDA.
Mitigação de riscos e valorização de ativos
A formalização de patente que incorpora depósito sob regime internacional fortalece o ativo intangível da empresa — o que pode contribuir para captação de investimentos, licenciamento ou parceria internacional. Por outro lado, a falta de conformidade pode resultar em invalidação de patente, perda de exclusividade, ou litígios. Assim, a área de compliance da empresa, em conjunto com o departamento jurídico, deve acompanhar a adesão ao Tratado de Budapeste e garantir que os procedimentos internos estejam adequados. Além disso, é recomendável inserir essa variável na due diligence em operações de M&A ou em contratos de licenciamento, pois investidores e parceiros valorizam a solidez da cadeia de proteção de PI.
Panorâmica setorial e oportunidades de mercado
Para setores como agronegócio, saúde, cosméticos, alimentos funcionais e biotecnologia industrial, a adesão do Brasil ao tratado representa vantagem concorrencial. Empresas nacionais poderão, mais facilmente, desenvolver e proteger invenções com base biológica, utilizar infraestrutura nacional para depósito e, eventualmente, atrair parcerias internacionais com maior credibilidade. Do lado da regulação pública, a medida está alinhada com políticas de estímulo à inovação, proteção de biodiversidade e uso sustentável de recursos genéticos — fato que o gestor deve aproveitar para realinhar a estratégia de inovação da empresa com os objetivos públicos, abrindo espaço para incentivos, financiamento e cooperação técnico-científica.
É importante, entretanto, que essa oportunidade seja explorada de forma estratégica e não apenas reativa — ou seja, não basta “saber que o Brasil aderiu”, mas sim preparar a empresa para operar efetivamente nesse contexto.
Orientações sobre assessoria jurídica preventiva
A adesão do Brasil ao Tratado de Budapeste é, sem dúvida, uma evolução relevante para o ambiente empresarial de inovação e propriedade intelectual. Contudo, para que essa evolução gere resultados concretos para a empresa, é essencial que gestores, juntos ao seu departamento jurídico ou assessoria especializada, promovam uma revisão sistemática dos processos de inovação, P&D, patentes e contratos que envolvem material biológico ou microorganismos. Adotar uma postura preventiva significa antecipar os impactos: desde adequação contratual, até seleção de laboratórios, previsão orçamentária, controle documental e alinhamento estratégico.
Recomenda-se que a empresa procure assessoria jurídica especializada em propriedade intelectual — especialmente para avaliar o pipeline de patentes, revisar contratos de transferência de tecnologia, definir quem será responsável pelo depósito, e garantir que o cumprimento do art. 24 da LPI e dos requisitos do tratado internacional seja plenamente considerado. Tal acompanhamento é relevante não apenas para garantir conformidade, mas para transformar a opção normativa em vantagem competitiva.
Em síntese: a modernização do regime brasileiro de propriedade industrial por meio dessa adesão revela uma janela de oportunidade para as empresas que inovam com base biológica. Contudo, para aproveitá-la de fato, será preciso planejamento, governança, investimento e o suporte jurídico adequado. Colocar em marcha esse conjunto de ações já no momento presente certamente aumentará as chances de a empresa consolidar sua posição no mercado interno e internacional sob a égide da proteção de patentes e inovação sustentável.





Comentários