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Herança Digital e Direito Empresarial: O Novo Patrimônio Invisível

  • Foto do escritor: Eduardo Caetano de Carvalho
    Eduardo Caetano de Carvalho
  • 22 de out.
  • 5 min de leitura

O patrimônio que não cabe mais em cofres


A transformação tecnológica das últimas décadas ampliou radicalmente a noção de patrimônio no contexto empresarial e familiar. Se antes os bens tangíveis – imóveis, veículos e aplicações financeiras – dominavam o planejamento sucessório, hoje emergem os ativos digitais, que vão desde criptomoedas e tokens até contas em plataformas de comércio eletrônico, perfis em redes sociais e direitos autorais sobre conteúdo digital.


A chamada herança digital já é uma realidade que desafia tanto empresas quanto famílias. No ambiente corporativo, marcas e gestores precisam lidar com o destino de dados, perfis empresariais, lojas virtuais e repositórios de informações estratégicas após o falecimento de seus administradores. A ausência de regulamentação específica, contudo, gera insegurança jurídica, conflitos entre herdeiros e dificuldades operacionais na continuidade dos negócios.


O presente artigo analisa o panorama jurídico da herança digital no Brasil, com foco nas suas implicações empresariais, à luz da jurisprudência recente, dos projetos legislativos em tramitação e das melhores práticas de governança sucessória digital.


O Direito em Transformação: da herança clássica à herança digital


O direito sucessório tradicional, concebido para bens materiais, encontra hoje limites diante da nova economia digital. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXX, reconhece o direito à herança como fundamental, mas o texto não contemplava – nem poderia prever – a existência de ativos digitais.


A lacuna normativa se tornou evidente à medida que dados pessoais, conteúdos em redes sociais, moedas virtuais e domínios digitais passaram a compor parte relevante do patrimônio das pessoas e empresas. Esses bens são classificados em três categorias principais: bens patrimoniais digitais (com valor econômico, como criptomoedas, e-commerce e NFTs), bens existenciais digitais (de valor afetivo, como fotos e mensagens) e bens híbridos, que combinam elementos econômicos e pessoais, como canais monetizados e perfis de influenciadores.


Essa pluralidade de ativos impõe a necessidade de um novo olhar jurídico sobre a sucessão patrimonial, no qual a proteção da intimidade e a continuidade das atividades econômicas digitais devem coexistir.


O poder concentrado das Big Techs e o impacto na sucessão digital


As grandes plataformas tecnológicas (Google, Meta, Amazon, TikTok, entre outras) concentram volumes imensos de dados e impõem termos de uso pouco transparentes. No contexto sucessório, isso cria obstáculos para que inventariantes e herdeiros acessem contas e ativos de pessoas falecidas.


O documentário O Dilema das Redes ilustra esse cenário: nossos dados se tornaram o produto mais valioso do século XXI. As Big Techs monetizam informações pessoais através de algoritmos de publicidade, e o titular desses dados, uma vez falecido, deixa herdeiros diante de um patrimônio intangível, mas economicamente relevante.


O artigo 422 do Código Civil consagra o princípio da boa-fé objetiva, que exige transparência e lealdade nas relações contratuais. Aplicado aos contratos digitais, impõe às plataformas o dever de permitir mecanismos razoáveis para a transferência, preservação ou exclusão de contas e conteúdos após a morte do titular. Contudo, na prática, essa obrigação é frequentemente ignorada, criando terreno fértil para litígios complexos.


O precedente do STJ: o inventário digital como novo paradigma


A jurisprudência brasileira começou a preencher o vácuo normativo. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão paradigmática, reconheceu a legitimidade do inventariante digital para acessar contas e dados do falecido, desde que respeitados os limites da privacidade e da intimidade.


O tribunal estabeleceu um critério de distinção: apenas os arquivos e contas com valor econômico ou relevância patrimonial devem integrar o espólio, enquanto mensagens íntimas e comunicações pessoais permanecem invioláveis, salvo autorização expressa em testamento ou decisão judicial fundamentada.


Esse precedente sinaliza uma evolução na compreensão do direito sucessório frente à era digital. Além disso, confere segurança jurídica a empresas familiares que dependem de ativos digitais para operar – como lojas virtuais, plataformas de marketplace e contas corporativas de publicidade digital.


Panorama legislativo: avanços e desafios no Congresso Nacional


A ausência de regulamentação específica levou à tramitação de diversos projetos de lei sobre herança digital no Congresso Nacional. Entre os mais relevantes estão:


  • PL 4.099/2012, que propõe incluir expressamente as contas digitais no Código Civil;

  • PL 6.468/2019, que disciplina a transmissão de dados e contas pessoais após o falecimento;

  • PL 5.820/2019, que permite a criação de testamento digital por vídeo; e

  • PL 1.144/2021, que trata da exclusão de perfis de falecidos e da preservação da memória digital.


Essas propostas enfrentam um dilema ético e jurídico central: como equilibrar o direito à privacidade com o direito à sucessão patrimonial? Empresas, famílias e o próprio Estado buscam um ponto de equilíbrio entre autonomia da vontade, proteção de dados e preservação do patrimônio digital.


O Anteprojeto do Novo Código Civil (2024) traz importantes inovações: inclui os bens digitais de valor econômico como parte automática da herança (art. 1.791-A) e protege as mensagens privadas contra acesso indevido (art. 1.791-B). Trata-se de um avanço significativo, mas ainda insuficiente sem políticas complementares de educação digital e planejamento sucessório preventivo.


O impacto no ambiente empresarial: sucessão, governança e continuidade


A herança digital não é apenas um tema familiar. Ela se tornou um desafio de governança corporativa. Empresas, especialmente as que operam no comércio eletrônico e no marketing digital, acumulam dados, perfis e contratos online que, muitas vezes, estão vinculados à pessoa física de seus fundadores ou administradores.

Em caso de falecimento, o acesso a esses ativos pode determinar a sobrevivência ou o colapso do negócio. Perfis de redes sociais empresariais, contas de anúncios, e-commerces e repositórios em nuvem podem ficar inacessíveis por ausência de planejamento sucessório digital.


Por isso, especialistas recomendam práticas como:


  • Inventário digital preventivo, documentando senhas, acessos e contas relevantes em meio seguro;

  • Cláusulas específicas em testamentos e contratos societários, prevendo o destino de bens digitais;

  • Políticas internas de governança de dados, definindo quem pode acessar, transferir ou excluir contas em caso de morte ou incapacidade do titular.


A adoção dessas medidas não apenas evita litígios familiares e empresariais, como também assegura a continuidade operacional e reputacional das empresas no ambiente digital.


O e-commerce e o novo patrimônio das empresas digitais


Segundo dados da ABComm, o comércio eletrônico no Brasil cresce de forma consistente e já movimenta bilhões de reais anualmente. Em cidades como Franca (SP), o setor ultrapassa a marca de R$ 600 milhões por ano, impulsionando cadeias produtivas e gerando empregos.


Essa expansão cria um novo tipo de patrimônio empresarial: as lojas virtuais, as contas de marketplace e os perfis de vendas. Tais ativos possuem valor econômico e simbólico, e sua destinação após o falecimento dos sócios precisa ser prevista em instrumentos jurídicos adequados.


O planejamento sucessório digital empresarial é, portanto, uma necessidade de gestão – não apenas uma formalidade jurídica. Ele garante a continuidade dos fluxos de receita, protege a reputação da marca e preserva a confiança de clientes e parceiros.


O futuro da sucessão é digital e preventivo


O direito sucessório brasileiro vive um momento de profunda transformação. A herança digital desloca o eixo tradicional da sucessão para um território onde dados, senhas, perfis e criptomoedas passam a ter o mesmo peso de imóveis e aplicações financeiras.

Para empresas e gestores, o recado é claro: o planejamento sucessório deve incluir o inventário e a destinação dos bens digitais, sob pena de perda patrimonial e paralisação de atividades essenciais.


Mais do que acompanhar a tecnologia, o Direito deve garantir segurança e previsibilidade. Nesse cenário, a assessoria jurídica preventiva se torna indispensável para orientar famílias empresárias, startups e organizações de todos os portes na criação de políticas sucessórias digitais éticas, seguras e conformes à legislação vigente.

O futuro da herança digital é, acima de tudo, um compromisso com a continuidade, a privacidade e a dignidade humana na era da informação.

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